sexta-feira, janeiro 18, 2008

À hora de almoço

Como não sei pintar, tricotar, bordar e evangelizar, entretenho-me com coisas mais fúteis. Não fosse a máquina secular da minha bisavó ter morrido durante a minha infância e poderia ter dado uma boa costureira de província. Acredito que seria uma satisfação para quem, como eu, não sabe fazer bainhas. Não sei dizer a Ave-maria. Ficou-me o pai-nosso de cada dia que aprendi na escola. Temo que, lá em casa, sejamos todos castigados – exceptuando a minha avó – por não sabermos os desígnios de Deus. Sei cozinhar uma coisa ou outra, mas nada que encha o estômago a um bom garfo. É triste, mas é verdade não sou um bom partido para casar. Ainda assim, tento aqui dizer que é algo que não me importa absolutamente nada. Afinal, um dia destes aprendo a fazer tapetes de Arraiolos e ficou uma mulher e pêras. Assim, admito-me uma inútil e é só por isto, simplesmente por este motivo, que me entretenho a avaliar a vida de quem passa. Sou, por certo, uma praga. Fico parada e tento adivinhar o que faz cada um. No restaurante em que almoço conheço um monte de gente de vista. São meus conhecidos. É como uma grande família que nem precisa de falar, mas que sente a falta quando algum membro não chega. No fundo, somos unidos. Tenho para mim que o homem calmo que chega com um livro com a capa ocultada pertence a uma seita. Da mesma forma que a família que se pendura no pescoço um dos outros, vezes sem conta, são umas lapas do pior. Parece que não se vêem há séculos, babam-se uns aos outros e comem quase nada. Os cavaleiros da Távola Redonda são os típicos tios porreiros que usam camisas aos quadrados e casacos pelos ombros. O casal que me faz reavivar a memória, com os antigos modelos da moda, lembra-me a minha mãe quando nasci. E, por fim, a família dos feios, sujos e abandalhados. A minha vizinha do lado, companheira de tais divagações, diz-me que o homem é engenheiro e que a mulher é professora. E depois, confiante argumenta: “Já os ouvi a ter conversas científicas”. E, eu, perante isto quase que dou o braço a torcer. Mas insisto: “Ela pode trabalhar num centro de saúde, ou numa repartição de finanças e ele faz a contabilidade dos senhores de bem da cidade”. E julgo ser altura de tornar-me uma mulher útil. Mas só daqui a mais um bocadinho, porque agora vou almoçar.
Fotografia: Martin Parr

6 comentários:

Anónimo disse...

Os meus sinceros parabéns.
Texto cheio
cheio
cheio
de Vida.

Andreia Azevedo Moreira disse...

Entendo-te bem Bruna ;) nisso de imaginar as vidas alheias. Constantemente. Constantemente. Constantemente. LOL Bom fim de semana!

Charlotte disse...

Não nos subestimes. As nossas observações são um trabalho de altíssima relevância científica.
Um contributo inestimável para o avanço do conhecimento sociológico. Oh, Oh..., as pessoas é que não sabem.

:-)

Anónimo disse...

Um grande projecto sociológico emana nesses almoços;)

Anónimo disse...

Comes vidas com sal ou com picante? Tens o dom da adivinhação e, às vezes, quando jogas o garfo com pozinhos mágico pescas trutas das grandes. É de se tirar o chapéu.

Anónimo disse...

És uma mulher e pêras, maçãs, bananas e todos os frutos silvestres do campo.

És uma mulher livre, peculiar e mto especial.

Gosto de ti
Beijo casanova