terça-feira, dezembro 29, 2009

Pássaros em dia de chuva

Caem gotas de água lá fora e a janela parece ter um fim destinado. É parapeito arrepiado de frio. E, entre uma rajada e outra, é o melhor abrigo dos pássaros, que piam, embora ensopados, com alegria privada. Deixo-me estar. Não há maior quietude do que nada fazer e contemplar.

quarta-feira, outubro 28, 2009

Abençoada ruralidade

Quando é que as pessoas percebem que a vida não se compra nem se vive em centros comerciais? Falo da vida vivida, da sentida e da que se deita de barriga para cima para receber o melhor. A vida, por si só, é despida. Acreditem que ela não está nas paredes ocas do consumo. Aí, onde vocês julgam ser o vosso melhor passatempo, não se vende a proporção certa do amor. Não se empacotam as sensações do vento, não se sacode o sol para dentro do saco e não se expõe o rio na vitrina. Aí não cabe a liberdade, os cheiros dos pomares e das gentes, a conversa fiada dos cafés, a vizinha da esquina a varrer a rua, o cão solto a ladrar, a criança suada a correr, o homem enrugado do sol, o céu. E só assim acredito poder nascer um novo dia. Isto tudo a propósito da menina, no alto dos seus 18 anos, com tiques citadinos. Sim, porque veio passar um fim-de-semana ao Alentejo e não encontrou um Centro Comercial. E depois disto eu digo: abençoada ruralidade.

terça-feira, outubro 20, 2009

Férias e hoje chove que se farta

Fui de férias. De tudo e de quase todos. Fui das notícias, das mesquinhices, das conversas de nada e da vagabunda vida de acordar para trabalhar. Fui de férias e o tempo sorriu-me com um sol quente de verão, no Outono. Deu nas trombas do clima frio e brindou-nos a nós e a mais uns quantos ingleses com a luminosidade da vida boa. Acordar, café, chinelos no dedo, praia, mar, caipirinhas, sol, comida fresca, uvas ao pôr-do-sol, leituras, noites, dormir, música, gargalhadas, descanso. Pelo caminho várias trocas de palavras e de carinhos. Ontem acordei e voltei à rotina. E, hoje, chove que se farta, mas porquê desgraça? Podem apontar-me todas as razões do calendário, mas as primeiras chuvas picam-me as entranhas de saudades do sol e são-me mais fatais que qualquer destino.

quarta-feira, setembro 02, 2009

Dá para esclarecer?

O Verão está a ir e já sinto um arrepio na espinha (maldito Inverno que ameaças sair da toca). Mas ainda mexe, ainda anda com penas fácies de voar e cheira a melancias de bocas regadas. Não se foi. Estará por cá mais um tempo e o corpo respirará por mais tempo. Teremos os poros abertos ao ar e guardaremos o bolor/musgo/cotão para depois, para os dias cinzentos, esses que sem remorsos nos deixam pálidos e frágeis de viroses de várias índoles. E tenham a humana muito em conta. Estão 34 graus lá fora e, aqui, isto é uma temperatura razoável e que não provoca alaridos. A minha gente só comenta os 39/40. Mas adiante. Comecei, eu, com esta lengalenga para explicar que sou terrivelmente perdida pelo estio. Porém, há coisas, nesta época, que me deixam com uma tremenda sensibilidade neural. Arrepiam-me as pessoas que estão horas em filas para entrar numa discoteca, em que pagam 20 euros com convite. Ora se isto é um convite eu já sou do outro tempo. Arranjados com os melhores trajes ali ficam a ver passar os Vip´s (coisa pouco sólida) que desfilam na passadeira ao lado com caminho aberto e à borla. O povo contenta-se e acha que está na berra. Depois, eles, os Vip’s, ficam num pedestal e o povinho fica cá em baixo a olhar para cima a ver se os vê. Dá para esclarecer? É que não sei se isto se pega e estou com medo que me espirrem para cima e que esta merda me mate.

quinta-feira, agosto 06, 2009

2

Porque chegas-te tão tarde, mas a tão boas horas?

quinta-feira, julho 30, 2009

Acorda-me amanhã

Ao meu dia dá-me o sabor das imperfeições que são completas. Lembra-me de como é fácil mastigar o fruto e cuspir o caroço, porque o tempo a acontecer, a mim, nunca me demora. Verte a liberdade de irmos indo por aí, neste mundo de parapeito aberto. Acorda-me amanhã, com um beijo que não precisa de entender o modo certo das palavras. Tenho o corpo terrivelmente narrado e aposto que sabes que nunca há um ponto concreto a finalizar a frase

quarta-feira, julho 08, 2009

A minha avó e o Cristiano Ronaldo

A propósito do Cristiano Ronaldo. A minha avó diz que o valor da transferência dava para repartir por o Mundo todo. E, eu, perante isto, calo-me e brindo aos seus cabelos brancos. Acredito seres tu a verdadeira cor da transparência. Puxo-te a cara para o afagar de um beijo, enquanto expludo de orgulho do amor que já me transborda de dentro.

terça-feira, junho 16, 2009

Inventar-te aqui...

Ando para trás na cadeira. Liberto-me à vontade das pernas. Absorvo-me para dentro e o mundo lá de fora escorre-me pela cintura. Cai-me que nem uma luva. Sem esforço, deponho-me à sua mercê. O dia há-de rasgar-se daqui e encher-se com o cheiro das marginais das viagens. Passa-me mesmo ao lado do braço esquerdo o sentir da tua marca. Acabei de te chamar meu amor, com o zumbido dos pássaros desta janela.


Imagem: Brian Gaberman

quarta-feira, junho 03, 2009

De dentro...

Sabe-me a vida a cerejas.
Daquelas que da boca vertem toda a liberdade do amor.
E ele só pode vir daqui, de dentro.

terça-feira, maio 26, 2009

Foste com os dias

Deixei de falar muitas vezes contigo. Deixei desde aquele tempo em que tu foste e eu fiquei à espera. Já não falo contigo. Quase nada fala. Antes dava por mim a falar contigo sozinha e, por vezes, já não me recordo de ti. Depois há aqueles dias de Primavera de recordações que já ninguém nos tira. Podíamos mandar palavras pelo ar, mas acho que já nem te lembras do número que calço. Se calhar nem sabes que cresci e que também aprendi a gostar de favas. Sei que são coisas menores. Deves de ter muitas coisas importantes para fazer e pensar. Consolo-me. De nada me serve. Sinto que já não me apetece muito saber-te. Mando-te esta carta e não quero que me respondas. Acabas por dizer coisas vagas e eu queria coisas fartas. De qualquer modo, está tudo bem?

sexta-feira, abril 24, 2009

Obrigado por Abril

Hoje enche-me a alma cruzar-me com a vizinha Xica. Vê-la do alto dos seus 70 anos a parodiar-se pela rua e a aprontar-se para a chegada da noite de 24, onde há cantes à liberdade e fogo de artifício aos molhos. Ela e o vizinho Pedro estão quase prontos. O jantar, esse, será servido mais cedo. A bata ficará pendurada na porta e a noite de Primavera tropeará. Pelo caminho, encontrar-se-ão com homens e mulheres de outros bairros. O casaco irá sobre os ombros e descerão até à avenida, onde as árvores já cheiram e brotam verde. A chegada da noite fará sair os lenços da algibeira e abrirão o pano para cobrir a pedra gelada da bancada. É ali que os encontro sempre que lá vou, no ponto privilegiado. O vizinho Pedro estará, à semelhança de todos os dias, com o seu chapéu envergado. Do alto, olhará as crianças que correm suadas, os pais que viu crescer e os seus amigos de batalha. Sentir-lhe-ei o sentimento de orgulho na liberdade. Depois, avistarei, ainda, o vizinho Xico e o avô Florival da Rita. A banda filarmónica ecoará, à meia-noite em ponto, os sons da Grândola Vila Morena e com o peito aberto cantarão Abril. E direi para mim, com a pele arrepiada e uma esperança infinita que o sintam: Valeu tanto a pena.

sexta-feira, março 27, 2009

Actualização quotidiana

De não ter nada para dizer. Saber mais das volvidas das ruas do que dos passos sobre as calçadas. Doei-me as pernas e custa-me a andar, mas palminho caminho. Palminho com os meus ténis novos que de novo só já têm a carapaça, porque a sola sujou-se do sujo dos dias, da poeira das horas e das vidas que passam viradas.

terça-feira, março 03, 2009

Tindersticks


Adiei esta escrita. Talvez por ter ficado com a garganta apertada e o nó da alma presa aos pássaros, aos campos de natureza, ao vento e ao sol a cair. Vi também a noite com os seus copos de vinho solitários e o coração carregado de palavras fortes. Tristes, mas sublimes. Quiçá que me entraram flecha adentro. Carregaram-me com o sabor das idas, sem regressos. Revisitaram-me vezes sem conta e apoderaram-se do meu corpo parado. Inundaram-me por dentro e deixaram-me ensopada. Sustentaram-me os poros sem meias sentenças. Por isso é que acredito que todos os que viram Tindersticks ao vivo, no coliseu, ficaram mais gente, enquanto seres que sentem.

A ti, por me tornares mais pessoa.

quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Niente

Deixar-me ficar sem as pernas do sarcasmo. Não interessam as coisas avessas e muito menos as inversas do topo da alma. Devem de ser como os bicos dos lápis apagados e como as mãos pesadas de anéis. Um carregamento de pretensas de nada. Um saco despejado e oco no lugar da cabeça. E de tanto vento aproveitar-se-á o vazio.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Não podes ver. Não sabes que as armaduras são duras? São bolas dinamite a rebentar. São pássaros sem asas e com bicos toscos, tortos. São coisas parvas. É o armário do coração fechado. É a boca seca e os sapatos apertados. Não podes ver, porque não o sabes. Fica-te nos azuis das manhãs e nos sóis de Inverno. Debruça-te para dentro e chocalha-te, abana-te; mas não acordes.

quarta-feira, janeiro 21, 2009

Politiquinhos


Queria freneticamente que todos fossem assim, depurados. Queria que todos, e até os que nunca poderão ser, fossem só osso e vida. Não me importaria que andassem nus e de chinelo de dedo. Pausadamente sentados numa cadeira de plástico, a olharem a praia vasta. Queria-os com o coração livre e aberto. Sem fato. Queria-os a espreitarem a terra de peito farto. Dar-lhe-ias uma caipirinha de recompensa. Não gostaria de os saber a roer os calcanhares ao poder. Não os queria assim: Como os cães que cheiram o mijo dos seus parceiros e que, depois, mijam aqui e acolá. Colocava-os nos bairros em mangas de camisa arregaçadas e dava-lhes uma sopa atulhada. Gostava que fossem loucos, loucos o suficiente para sentirem. E que fossem gente, mas se serem pragas, ervas daninhas e musgo agarrado. Por mim, seriam políticos felizes, políticos sem gravata. Sem o seu ar patético a destemperarem os domingos, as segundas, as terças, as quartas, as quintas, as sextas e os sábados.
Imagem: Magritte

sexta-feira, janeiro 16, 2009

Camané

Sim, está a chover lá fora. Estou arrepiada e não é do frio. Hoje, toca-me o Camané no leitor. Toca-me. Dilui-me o tempo e deixa-me quieta. Suspende-me e deixa-me estar. Solve-me de qualquer composto material. Entrega-me ao cheiro das laranjas no pomar e enche-me as paredes de sonhos. Fico-me na ilusão de que o homem seja ainda voz e pele. E de uma só vez leva-me a vida à boca.

Foto: Reinaldo Rodrigues

quinta-feira, janeiro 08, 2009

Mãe

Foi ontem mãe, mais coisa menos coisa, que me tiveste. Estás igual. Os 26 anos não passaram por ti. Continuas a cheirar a perfume e trazes as mãos com as unhas longas. Não sabes quantas vezes já te vi a pôr verniz. Tantas. Já não durmo na tua cama, resolvi ter um espaço meu. Mas tem dias que me aninho no teu leito, normalmente com o acordar das manhãs. Não imagino como um corpo como o teu me pode ter suportado. Se não fosse verdade, duvidaria. Bem sei que não te sai nas semelhanças. Somos diferentes. Tenho a pele mais morena, o cabelo mais escuro, os dedos maiores do que os teus e o meu tamanho já te abraça por cima. Sou teimosa e tu és mais conformada. Não nos vestimos de modo igual e bem sei que, muitas vezes, me gostarias de ver de blush rosado. Tenho os meus aspectos e tu tens os teus. Somos uma face da mesma moeda, mas tu és a coroa e eu sou a cara. Tem vezes que o bater do teu coração se ouve mais perto da minha boca. E tento remendá-lo, quase sempre sem jeito, sem nexo. Depois, voltas a sorrir e a perguntar muitas coisas. Tantas que me deixas confusa. Mudamos muitas vezes de linha, desafinados, desatinamos. Voltamos a sintonizar-nos na mesma estação. Irrito-me e tu ris. A timidez muitas vezes ata-me os braços e retrai-me o atrevimento. Deveria de ser mais fácil dar-me. Alinhas a vida à esquerda, normalmente no mesmo sentido em que bate o coração. Acho que aprendi a fazer isso contigo. E, não sabendo como, quebro-me muitas vezes e sinto coisas apertadas cá dentro. É a vida, diria a avó. Ambas não herdámos a sua perseverança. Muitas vezes pensei porque não me tiveste em Julho. Janeiro, decididamente, não é o meu mês. E sem haver nada a fazer, não te preocupes, porque imagino sóis nas persianas. Repara que tenho muitas coisas para te dizer, mas perco-me. Não há forma original de te mostrar. Um dia pintei uma pedra e fiz dela um ouriço. Ainda a tens na secretária e fizeste dela um pisa-papéis. Depositei nela todo o meu empenho e orgulho-me de seres tu que a estimas. Mãe, não poderia ter crescido melhor e não haveria melhor ventre para nascer.